Ruralidade Terapêutica

25-04-2020

A dinâmica da vida nas aldeias constitui-se em várias dimensões por aquilo que poderíamos considerar o antídoto para os desequilíbrios psicológicos de que padecem muitos dos que vivem e se deixam esvair no ritmo acelerado e nas rotinas superficiais das cidades. Nas aldeias conhecemos os vizinhos e sabemos sempre um pouco das suas vidas e rotinas (sem consultar as redes sociais). Existimos como elemento daquela rua, lugar e comunidade. A nossa presença é sentida e sentimos a presença dos outros. Há sinais de vida no exterior das casas (roupas que secam ao vento, hortas e outros cultivos no ponto do ciclo em que é suposto estarem, brinquedos esquecidos, cães, gatos e o galo que nos acorda...). Se algo não estiver bem, estes sinais mudam, os vizinhos notam e lembram-nos de que somos notados.

Nas aldeias há oportunidade de nos envolvermos em atividades que todos os dias precisam de nós... sim, as atividades em si e os "objetos" delas precisam de nós. Na agricultura, na criação de animais ou mesmo na manutenção de um pequeno jardim/horta não há adiamento e agenda compatível com indisponibilidades. Há um sentimento de utilidade diária para grande parte da população que ainda vive ou complementa a vida com atividades agrícolas. O "eu" é essencial para outras vidas.

Estas duas dimensões do ser parte e do ser útil (somos notados e somos essenciais) seria um antídoto para os sentimentos de vazio que assolam as sociedades modernas. Como nos transmite Viktor Frankl com o seu conceito de neurose noógena (provocada pela frustração existencial e falta de sentido/propósito) o ser humano precisa de uma consciência estruturada da finalidade da sua existência.

Esta perceção interiorizada da nossa função perante o mundo que nos envolve, combate pensamentos depressivos relacionados com a falta de sentido de valor próprio, combate ciclos de apatia pois compele-nos à ação com significado, aumenta os níveis de esperança pela renovada confirmação de que o que fazemos tem impacto e traz frutos (para além dos efeitos mais diretos e amplamente estudados que o contacto com a terra e a natureza têm ao nível hormonal e da importância de uma rotina de vida com atividade física diária ...).

O tempo corre a um ritmo aparentemente diferente nas cidades e nas aldeias. Um relógio num e noutro sítio, marca exatamente o mesmo passo. Uma pessoa num e noutro sitio entra num compasso diferente. Nas aldeias paramos e falamos com quem por nós passa, caminhamos até à mercearia ou café onde encontramos família, vizinhos, conterrâneos. Como sabemos da sua vida, fazemos perguntas. Como sabem da nossa vida, respondemos às perguntas que nos fazem. Nesse momento "há tempo". Num hipermercado andamos a passo acelerado por entre os corredores, vemos de relance algumas faces, cumprimentamos com acenos de cabeça fugazes, ficamos com impaciência na fila, esperamos que a senhora da caixa não atire os produtos para fora do hipermercado tal é a velocidade de movimentos e saímos a correr para o amontoado de carros em que esperamos que não haja outra fila. Muitos outros exemplos (aqui um pouco caricaturados) poderiam ser dados. Certo é que o ritmo é vivido como se de dois relógios do mundo se tratasse. Poucos são os adultos que não referem sintomatologia ansiosa relevante em alguma fase de vida. Os índices de ansiedade na população residente nos grandes aglomerados populacionais, está em preocupante e constante crescimento. Assim, uma vida rural onde o conceito de tempo incorpora em si a necessidade de relação e o próprio ciclo da natureza (semear, cuidar, esperar, cuidar, esperar... colher), seria um antídoto natural para a pressão criada pelas urbanidades dos nossos tempos. A experiência de presença mindful tão fácil num ambiente de aldeia trava o ciclo da aceleração de pensamento e ações.

Podemos supor que as duas patologias "epidémicas" das nossas gerações modernas teriam muito menor prevalência se a vida se tivesse mantido mais próxima destes ritmos e contextos da saudosa ruralidade portuguesa. (Ressalte-se que o isolamento e desertificação que agora se constituem como um problema grave para algumas comunidades rurais sobretudo no interior do país, são fenómenos relacionados com o próprio processo de saída e concentração nas grandes cidades. Essas comunidades envelhecidas e abandonadas não representam a vida rural cheia de laços, significados e atividades produtivas que aqui estão referidas).

E agora, como trazer um pouco desta vida rural para as nossas vidas citadinas? Como construir uma aldeia em nós e nas vivências da nossa família? Deixo essa reflexão e partilha para uma próxima edição... vivo numa aldeia mas por vezes deixo que as cidades (reais e metafóricas) invadam partes da minha vida! Talvez deva também refletir sobre como nos protegermos das "cidades".   

© 2020 Patrícia Labandeiro. Todos os direitos reservados.
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