O que dizes sobre ti, dá-te poder ou tira-te a esperança?

29-05-2020

Se nos pedirem para fazermos um resumo da nossa vida, que aspetos selecionamos e como os contamos? Duas pessoas com experiências muito semelhantes (por exemplo irmãos) podem fazer auto-narrações completamente diferentes da sua história de vida, aparentando até que não tiveram a mesma família, que não frequentaram as mesmas escolas e que não passaram pelos mesmos acontecimentos marcantes na infância. 

É certo que não se mudam acontecimentos passados mas, por vezes, é na narrativa desses acontecimentos que reside a resiliência e o poder ou o sofrimento e a desesperança.

E as narrativas, essas, estamos sempre a tempo de aprofundar e reconstruir!

Olhar para trás e ressignificar alguns episódios de vida, mudando por exemplo o foco da atenção, o enquadramento ou a extensão dos seus impactos em nós, podem ajudar-nos a "polir" a nossa história auto-percepcionada e mudar a emoção associada no presente. É com base nas interpretações mais negativas e auto culpabilizadoras que criamos as crenças disfuncionais sobre nós, os outros e o mundo.

Se conto várias vezes, aos outros e a mim mesmo, a história de ter tido uma infância em dificuldade financeira, é natural que desenvolva uma visão do mundo baseada na escassez de recursos e crenças mais rígidas sobre a minha necessidade de assegurar bens para a sobrevivência. Se conto repetidas vezes a história de ter sido traída por um amigo, é natural que desenvolva uma visão do mundo baseada na necessidade de me proteger dos outros e crença mais rígida sobre a probabilidade dos outros não serem de confiança. Se conto repetidas vezes a história de insucesso, por exemplo no percurso profissional, é natural que desenvolva uma visão do mundo baseada na dificuldade de se encontrar um emprego satisfatório e uma crença mais rígida de que em algum momento as coisas tendem a correr mal e a encaminhar-se para o insucesso.

Então surge a questão: e se eu efetivamente vivi com restrições financeiras, se vi traída a confiança que depositei em algum amigo e se tive uma ou várias experiências de trabalho que não foram sustentáveis? Como "contar", a mim e aos outros, esses episódios da minha vida que são reais e fazem parte dela?

Se nessa infância com escassez financeira eu pude sobreviver, significa que houve uma luta louvável da minha família, solidariedade a apoio de outras pessoas ou instituições e resiliência da minha parte. A história pessoal que inclui o contexto despoletador "escassez financeira", pode ser contada e internamente vivida com maior valorização daquilo que eu e a minha família fizemos para subsistir, gerando assim uma emoção de orgulho e gratidão que alimente crenças como "mesmo perante a escassez, há meios de superação", "a minha família protegeu-me" e "perante a necessidade, há pessoas e circunstância que nos podem ajudar".

Se nessa experiência em que me senti "traída" tive por exemplo o apoio subsequente de outras pessoas ou se encontrei em mim os recursos para lidar com a dor emocional e seguir em frente mantendo outras relações saudáveis, significa que destrincei e valorizei os amigos mais merecedores na minha confiança, que tenho uma rede de suporte e que sou resiliente para gerir impactos emocionais de atitudes negativas dos outros. Assim a história pessoal, embora inclua uma experiência que revela a possibilidade de nos sentirmos traídos, pode também revelar que outras pessoas se mantiveram apoiantes, que aprendi mais sobre o comportamento humano e estou mais capaz de identificar sinais de alerta e de lidar com emoções negativas. Pode contribuir para uma visão mais realista das relações e para uma auto-avaliação de maior capacidade de enfrentar desilusões na vida...

Se nas experiências de insucesso profissional descobri mais sobre o tipo de tarefa e ambiente a que me adapto ou não, sobre as exigências das relações laborais, sobre competências que apesar do desfecho percebi que domino, sobre a capacidade de reiniciar e de persistir na busca, sobre o que preciso de fazer para ser selecionada e criar oportunidades... posso integrar a história com esses desfechos mas com foco ou complemento de uma visão rica de oportunidades de conhecer diversos contextos, de lidar com pessoas diferentes, de aceitar fins e encetar novos inícios, de aprender múltiplas tarefas e construir assim um perfil mais flexível e ajustável a novos desafios.

           Apontamento: Em entrevista de emprego e selecção é muito evidente como duas pessoas com passado anterior             pautado por muitas mudanças laborais, conseguem sentir esse aspecto como um factor negativo, justificando-               se e atribuindo a causas externas, e outras, como um aspecto positivo ao terem um perfil ajustável e inúmeras                 experiências que os preparam melhor para dar resposta a novas exigências!).

Este "trabalho" de abrir novos pontos de análise, perspectivas e visões sobre episódios passados pode acontecer num contexto terapêutico (e quando falamos em situações mais graves por exemplo de maus tratos, conflito agudo, abusos, entre outros, assim deverá ser pois pode tratar-se de um processo psicoterapêutico com necessidade de orientação especializada). Mas pode, para maior parte de nós que viveu histórias de vida sem acontecimento severamente danosos, mas que oscilamos entre visões negativistas, culpabilizadoras e assustadoras dessas histórias de vida, ser um exercício consciente e auto mobilizado de desenvolvimento pessoal.

O que eu digo sobre o meu passado contribuí para as crenças que vou cristalizando sobre o mundo que me rodeia. Como o ser humano tem uma tendência instintiva para a validação das suas crenças (procura de congruência cognitiva e evitamento da dissonância), essas crenças vão levar-me a estar mais focada em toda a informação que eu possa reunir e que confirme que o mundo é efectivamente um lugar de escassez, que os outros não são merecedores de confiança e que o insucesso é sempre o desfecho mais provável. Se assim é, induzimos também crenças sobre nós: que temos de viver em estado de alerta constante para garantir recursos e sobrevivência, que não somos capazes de nos proteger dos outros ou que não somos merecedores de confiança e que não somos eficazes e competentes para obter sucesso.

Este ciclo (o que conto a mim mesma, a crença que isso gera sobre o mundo e a crença que isso gera sobre mim) adultera a forma como vivo cada situação no presente. Antever a desgraça, é uma desgraça em si e o impacto emocional que traz aumenta exponencialmente a probabilidade de eu não conseguir garantir recursos, de eu ser abandonada pelos outros e de não obter sucesso. Estes resultados vêm confirmar as crenças pré-existentes e o ciclo perpetua-se e fecha-se em si mesmo, levando, em situações mais extremas, à psicopatologia pois ninguém consegue viver equilibradamente num mundo onde não há esperança!

Olharmos para trás e focarmos novos aspectos da mesma experiência, ajuda-nos não só a reconstruir a narrativa mas também orienta o olhar presente. Se a narrativa me diz que tenho recursos, competências, rede de suporte, uma bagagem de ferramentas para vida... se a crença é a de que mesmo perante alguma situação difícil, terei forma de lidar com ela, então há esperança. Se acredito que sou uma pessoa capaz, vou procurar mais evidência dessa minha crença, olhando mais atentamente para a força e poder do que faço com as adversidades do que para aquilo ou aqueles que as provocam

Se olho para mim, com apreço, orgulho e sentido de auto eficácia, a energia e sentido de esperança que daí resulta vai potenciar que tudo seja vivido com um olhar mais lato, mais motivador, mais compassivo, mais tolerante... e dia a dia, construo a tal "narrativa" de que se fará a minha vida!  

© 2020 Patrícia Labandeiro. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode
Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora