"Novo normal"? Um erro de narrativa.

21-09-2020

Tenho-me debatido com um enorme desconforto com o conceito de "novo normal" que tentam aplicar às regras especiais, excepcionais e limitadoras do que nos faz humanos para combate à actual pandemia.

Regras que nos obrigam a evitar a naturalidade da proximidade e contacto físico, que nos impedem de visitarmos as pessoas que mais amamos quando estão hospitalizadas, que nos deixam longe delas mesmo que estejam na sua derradeira caminhada de despedida da vida, que colocam as nossas crianças em contextos frios e automatizados... não aceito e não integro como normalidade nenhuma!

Se temos todos de fazer um esforço cívico de auto-protecção e de cuidado altruísta com os outros? Sim. Se temos de ser responsáveis e abdicar de algumas superficialidades nas nossas rotinas? Sim. Se temos de rever agendas e reprogramar algumas actividades? Sim. Se temos de repensar processos e estratégias de trabalho para minimizarmos potenciais de contágio? Sim. Se temos de aceitar todas a regras sem as questionar e colocar na balança do bom senso, dos valores e da ética? Não.

Muito se poderia dizer sobre os impactos negativos de inúmeras medidas de combate à pandemia mas se é de vida e da sua protecção que, em última instância falamos, foquemo-nos em duas questões eminentemente ligadas a esta dimensão suprema da existência. Um dos "fenómenos" que a todos nos deve chocar é a negligência (assumida e desculpabilizada) perante a doença física e mental que acarreta riscos acrescidos e que tem resultado num aumento significativo das taxas de mortalidade por outras causas (os dados chegam todos os dias de fontes oficiais e credíveis). O outro fenómeno, que nos reduz a seres desprovidos de significado existencial, é a imposição de que um doente, independentemente do seu estado global, nível de desespero e eventual proximidade da morte, não pode ver os olhos daqueles para quem olhou toda a vida, sentir as mãos que fizeram parte do seu percurso e receber o conforto mínimo de uma presença de amor que daria algum sentido e alívio ao momento. Para mim, este foi um dos maiores ultrajes que se "justificaram" com esta pandemia. Um profundo e irreparável dano a seres humanos que partiram na solidão de um mundo cego pelo pânico e a famílias cujos processos de luto poderão ficar para sempre comprometidos... Chamar a isto "novo normal"? Nunca.

Se fosse possível quantificar os níveis de dor emocional acrescida nestas e noutras situações, talvez nascesse uma percepção diferente sobre o que estamos a prevenir e o que estamos a causar.

Poderíamos elencar mais uma panóplia de comportamentos e medidas que nos tornam a todos menos humanos nesta pandemia. Todos os conhecemos. Sabemos que não nos são naturais. Geram desconforto, estranheza, tristeza, ansiedade, dor... e será preferível que continuem a gerar tudo isto (um pouco de tudo isto). Que não os deixemos entranhar e normalizar-se em nós enquanto mudança de paradigma sobre as relações, sobre o comportamento em sociedade e sobre a ética. Encontraremos formas de resistir e de superar os impactos causados, mas não voltaremos ao caminho da humanidade na relação se os absorvemos como suposto normal.

Não é um novo normal. São medidas transitórias. São regras exepcionalmente concebidas. São esforços extraordinários.

São desumanidades com que teremos de lidar. São um ataque e desafio ao nosso sentido de amor pelo próximo.

Mas "novo normal"? Nunca o sentirei como tal... Cumpro mas não lhe chamo "normal". Adapto-me mas não me resigno. Aceito mas não como uma nova verdade.

Não podemos ignorar a importância das palavras e da narrativa. Se dissermos recorrente e consistentemente a nós e aos outros (sobretudo às nossas crianças) que tudo isto é uma "normalidade" a ser integrada, estamos a mudar o significado e a gerar um movimento de conformidade e ajustamento em nós.

Que esta transitoriedade não nos transforme em frieza e que voltemos ao calor do amor espontâneo. E se, por desaire e catástrofe, não podermos voltar... morrerei a desejar esse regresso. E então, o que vive em mim é o sonho.

Antes viver nesse sonho do que aceitar isto como verdade.   


© 2020 Patrícia Labandeiro. Todos os direitos reservados.
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