Ninguém acorda subitamente infeliz

24-06-2020

   Que nível atroz de dor emocional será necessária para anteciparmos o incógnito da morte? Sabemos que para lá estamos, a cada segundo, a caminhar mas grande parte da experiência humana é ditada pelo instinto da fuga a esse desfecho. Instinto de sobrevivência, mecanismos de proteção, procriação, desejo de deixar legado, angústia da não existência...

     E que imensidão de vazio existencial será necessário para interiorizarmos que o mundo e os outros ficam melhor sem nós? Ou talvez não fiquem mas mesmo imaginando o seu desespero e profunda dor, consideramos a morte como a melhor opção no momento. Quão vazios de sentido e significado temos de nos sentir para ter esta visão da morte como um refúgio apaziguador?

  Poderá um ser humano em pleno uso das faculdades intelectuais, das competências psicológicas, dos processos de maturação psicoafectivos, dos recursos de auto regulação emocional, da liberdade da sua auto-determinação, ainda assim, chegar a esta conclusão? Poderá esta "solução" ser uma alternativa válida e aceitável, social e existencialmente?

    Se acreditarmos que sim, quantos pressupostos e valores éticos se desmoronam?

    A "culpa" raramente é um constructo e uma experiência útil. Nos casos de suicídio não o é, com toda e absoluta certeza. Nem a (suposta) culpa de quem o cometeu, nem a (suposta) culpa de quem não o conseguiu evitar. Não há culpa, há processos de uma enorme complexidade, experiências internas privadas, segredos das nossas sombras, mecanismos de adaptação ao mundo e aos outros, relações intensas que por vezes intensificam a turbulência, quebras repetidas de conexão com os outros e com a nossa essência, silêncios em momentos de solidão dolorosa e barulho em momentos de solitude necessária, desencontros, mensagens perdidas... uma rede emaranhada que nos pode manter num caminho de saúde emocional ou que nos pode prender e imobilizar. Pesar. Puxar.

   Ninguém acorda subitamente infeliz. A consciência desse estado pode assemelhar-se como súbita, e daí a importância da atenção e aceitação dos estados emocionais negativos mais ligeiros e frequentes. Ninguém decide que um dia quer este desfecho. Ninguém deseja a morte como um passo de realização da própria vida... a morte acontece-nos e é nossa. Das poucas coisas tão inerentemente nossas que não precisamos de recear que se nos escape... não nos escapará, espera-nos.

   Mas pode haver um dia em subitamente a ideia de antecipar a morte surge. Em que subitamente desejamos um desfecho imediato. Uma acalmia e um refúgio... não queremos mais que ela espere por nós e vemos neste encontro algo de transformador. Creio que quem comete suicídio ainda poderá ter uma réstia de esperança. Vai agir, por expectativa de algo.

   Algumas vidas carregam menos esperança do que alguns suicídios. Mas depois de períodos de desesperança, de dor, de caos e de vazio, voltam a perceber sementes, a ver gestos, a sentir movimentos, a absorver amor, a ver nos outros um porto de abrigo, a fazer coisas que ressoam como significativas, a verem um reflexo bonito de si nos outros, a intuir algum sentido...

   A esperança é o que nos salva a cada dia. Se conhecemos alguém sem esperança, temos também nós um sentido e um chamamento a vermo-nos bonitos e solidários refletidos no outro. Os outros que nos rodeiam podem ser por si só uma fonte inesgotável de sentidos e de esperanças... deixamos de nos ver a nós, quando também deixamos de observar com entrega os outros.

   (Estas) Generalidades não se aplicam a especificidades. Mas antes de sermos uma especificidade que exija a compreensão complexa de muitas redes emaranhadas, tentemos viver escutando a generalidade de que não há outra vivência mais protetora da nossa saúde mental e promotora do bem estar do que a conexão afectiva e genuína com os outros.

   Num raro e interessante estudo longitudinal de pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em que dezenas de homens foram acompanhados ao longo de sensivelmente 8 décadas, para se analisarem as variáveis que contribuem para os níveis de bem estar e sentimento subjectivo de felicidade, a conclusão mais relevante foi a de que a variável mais impactante para nos mantermos saudáveis e felizes ao longo da vida, é a qualidade das nossas relações. (Sugestão: TED Talk de Robert Waldinger - O que torna uma vida boa).

  Ouvir, estar presente, empatizar, comunicar, partilhar, dar, receber, abraçar, compreender, suportar, aconchegar, perdoar, beijar, amar... se pode não ser suficiente para evitar com certezas todas as tragédias na nossa vida? Pode. Mas pelo menos ouvimos, estivemos presentes, empatizamos, partilhamos, demos, recebemos, abraçamos, compreendemos, suportamos, aconchegamos, perdoamos, beijamos e amamos... demos sentido a alguma das vidas e narrativas que se emaranharam!

 Antes da psicopatologia instalada e que exige séria intervenção clínica especializada, há um curso desenvolvimental da patologia em que muitos "pequenos acasos" se vão construindo como factores de risco e factores de protecção. Estamos TODOS neste curso desenvolvimental que nos coloca em algum ponto do continuum entre o sentimento de alegria/esperança, a tristeza normativa e a depressão; estamos TODOS e SEMPRE neste (des)equilíbrio...

     Qualquer um de nós se pode "perder" num destes emaranhados complexos que sugam o sentido. Temos de estar atentos, compassiva e ternamente atentos... não porque a tristeza seja imprópria, não porque a raiva seja pecado, não porque a dor seja vergonhosa. Mas porque para podermos viver a tristeza, a raiva e a dor que acompanham inevitavelmente alguns momentos das nossas vidas, precisamos de relações e de pessoas muito enraizadas em nós. Há uma dimensão muito íntima de toda a existência. Quando essa dimensão estiver sombria, temos de deixar que outros entrem com alguma luz... abrir uma brecha. Não faz mal estarmos tristes, com raiva, em dor. Se permitirmos que alguém entre e traga um "foco de luz", algo se vai clarificando! O emaranhado, talvez, se vá soltando...

     Sejamos "focos de luz" uns para os outros, aceitando empaticamente as nossas emoções mais sombrias, normalizando os desvios no continuum e amparando o impacto das quedas maiores. Atentos também ao momento em que a tristeza já não é reactiva mas passa a ser o "fenómeno emocional" que dita as nossas vidas. Quando adquire uma dimensão própria que exige que a vida e os outros se moldem a ela... aí, temos de humildemente aceitar que precisamos de mais mãos, mais impulsos, mais recursos, mais corações a sintonizar com o nosso. Precisamos de ajuda profissional. E temos de confiar... como quando, e perdoem-me a comparação simplicista, confiamos o nosso carro ao mecânico. Confiar que um conhecimento técnico vai "afinar a máquina", confiar que um conhecimento especializado vai proteger a nossa psique da intenção da autodestruição e o nosso âmago da desesperança.

     Se uma morte pode ter algum sentido e valor, esse valor reside na causa, na reflexão, na mensagem ou no ensinamento que nos deixa... De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2016), ocorre um suicídio a cada 40 segundos, no mundo inteiro, o que equivale a cerca de 2200 por dia e próximo de 1 milhão por ano. Esta Organização estima que em 2020 este número possa subir para cerca de 1,5 milhões de mortes por ano. De salientar, a este respeito, que, por cada caso de suicídio consumado, existem cerca de 20 tentativas com o mesmo fim. Assim podemos dizer que quase de forma ininterrupta alguém está a tentar acabar com a própria vida. A luta contra este desfecho trágico de uma série de doenças mentais, sendo a Depressão a mais diagnosticada e potenciadora do suicídio, tem de ser vista como uma missão séria dos nossos governos. 

     Criarmos sociedades, comunidades e famílias onde os indivíduos possam sentir, pelo menos, a vontade e capacidade de lidar com a própria existência, é um objetivo tão medíocre e ao mesmo tempo tão essencial, que deveria configurar nas agendas de prioridades e nas estratégias de investimento público de todos os países. Ainda temos um longo caminho a percorrer neste reconhecimento de que o direito de usufruir do bem estar necessário à intenção de preservação da vida, é um direito essencial. Se abdicamos dele, abdicamos do sentido da vida.

    Educar para a saúde mental, criar programas preventivos, mobilizar respostas de apoio especializado, garantir recursos às famílias... muitas linhas de atuação que têm de ser aprofundadas e reforçadas. Que cada uma destas mortes no impulsione para a tomada de consciência.

     Enquanto psicóloga não posso abdicar da minha convicção e esperança de que em cada história de dor, há brechas que podem trazer oxigénio. Em cada momento de desânimo, há réstias de recursos internos que podem ser alimentados e reavivados. Em cada triste desfecho em que algo nos escapou e falhou, há responsabilidade de reflexão e maturidade para gerar crescimento. Façamo-nos crescer enquanto sociedade mais capaz de suportar os seus... Se nem isso dermos aos que decidiram partir, então, nem eles nem nós encontraremos um sentido. 

© 2020 Patrícia Labandeiro. Todos os direitos reservados.
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