Do "heroísmo" à resiliência e humanismo - o convite à transformação, começa agora!

13-05-2020

Agora que já não estamos com a "euforia do herói" perante o primeiro ataque do "inimigo comum", vamos pôr à prova a nossa resiliência pessoal, os nossos valores alicerces e a nossa maturidade colectiva. Agora que já não estamos em reacção, podemos abrir-nos à transformação.

Como nas histórias de amor, também nas histórias da adversidade há um momento em que vivemos a experiência com muita paixão, uma espécie de romantismo, uma esperança quase naive e um fluxo de energia que nos faz sentir capazes de enfrentar a maior das provações!

No ciclo normativo de reacção à crise, depois de passar a fase da negação e caos inicial, o organismo prepara-se para a "luta", para ultrapassar o obstáculo, para fazer frente ao inimigo/perigo, para garantir a sobrevivência (neste caso, a individual e a da espécie). Como seres inerentemente sociais e socializados que somos, rapidamente nos alicerçamos na velha máxima: juntos somos mais fortes. Essa união e instinto inato de luta para a sobrevivência faz-nos entrar numa energia de heroísmo colectivo, em que os valores da solidariedade, o foco nas forças e a mobilização de todos os recursos psicológicos e emocionais disponíveis, acontecem em uníssono e o processo de cada pessoa, potencia o processo dos outros que a rodeiam e com quem partilha esta força motriz.

O tempo passa e o inimigo é vencido, o que caiu reconstrói-se, a dor emocional é apaziguada pela noção de proximidade afectiva e cada um segue no seu processo mais individual numa fase consequente de retorno à "normalidade"... mas será isso que estamos a viver? Nesta pandemia que se tornou real para a Europa em Fevereiro, o inimigo estará vencido? O que caiu já está em fase de reconstrução? A dor está apaziguada e podemos voltar à "normalidade" de forma mais individualizada?

Na verdade, não sabemos. Não sabemos se o inimigo está a perder força ou a adaptar-se a condições mais diversificadas de sobrevivência garantindo a sua expansão. Não sabemos se os impactos destrutivos já estão no seu "pico" e se podemos planear a reconstrução. Não sabemos se as dores que sentimos estão a encontrar apaziguamento consistente ou se estamos nós a integrá-las como parte do que agora temos de aceitar que somos... Sabemos, isso sim, que não podemos voltar à normalidade como um processo individualizado. Isso sabemos. Se nos egocentrarmos já neste processo, não se prevê um desfecho favorável, nem da pandemia e nem das pessoas em que nos tornamos ao vivê-la.

Agora fica à prova a verdadeira paciência (já não é tão fácil ver o lado divertido do confinamento e das limitações que nos traz), a verdadeira empatia (agora que já aprofundamos visões, percebemos que não estamos todos no mesmo barco), a verdadeira tolerância (agora que já percebemos que as divergências políticas e conceptuais persistem e geram desacordo e tensão social), a verdadeira solidariedade (agora que os impactos financeiro já abalam uma elevada maioria de famílias, já sentimos a exigência de abdicar do que nos pode vir a fazer falta para alguém a quem já está a fazer falta), a verdadeira maturidade (agora já sabemos que não se trata de uma aceitação provisória de circunstâncias adversas mas de uma aceitação continuada, quiçá definitiva), a verdadeira capacidade de adaptação (agora que sabemos que não vamos poder ficar protegidos e quietos nos nossos casulos esperando que o inimigo desapareça mas vamos ter de estar onde ele pode, sem que saibamos, estar também)...

Agora, já voltamos a ver o mundo a acontecer para além da pandemia! Voltamos a ver dimensões e realidades das quais estivemos distraídos. Nos entretantos... Um grupo de terroristas do estado islâmico executou 52 jovens na província de Cabo Delgado em Moçambique porque resistiram ao alistamento; milhares de crianças refugiadas que conseguiram sobreviver à guerra nos seus países de origem e às perigosas travessias marítimas estão em sofrimento profundo, em desamparo e a enfrentar a morte no suposto solo da salvação, a nossa Europa; um pai, português e vizinho de qualquer um de nós, espancou a própria filha de apenas 9 anos (a Valentina, dessa sabemos o nome!) e deixou-a, com conivência da madrasta, em agonia até morrer, muitas horas depois e a pensar sabe-se lá o quê sobre o mundo e sobre nós, todos... a pandemia não mudou o mundo para o qual não queríamos olhar mais! O "milagre" não está a acontecer.

Temos agora de encontrar a força para lidar com a pandemia e com o mundo que insiste em revelar-se também na sombra do que podemos ser. Agora sim, começamos a crescer na nossa resiliência e começamos a ter oportunidades de trazer as supostas aprendizagens da pandemia para o mundo que continua a precisar tanto de nós. O "milagre" não há-de vir do vírus, mas de um processo longo, exigente e muito consciente que cada um de nós poderá fazer.

E o que seria sermos heróis perante a crise dos refugiados, o fenómeno do terrorismo ou as crianças, nossas "vizinhas", que crescem em ambientes que provocam dores indecifráveis? O que seria sermos heróis perante os nossos filhos, os nossos vizinhos e na nossa comunidade?

E se pudéssemos ser heróis para além da pandemia?

Heróis da resiliência, da compaixão e da maturidade colectiva. Heróis sem discursos heróicos mas com acção solidária consistente, heróis sem adereços mas com uma integridade intrínseca, heróis sem que precisemos do rótulo mas reclamando o nosso poder de gerar mudança

É que agora, já não é uma questão de mobilização heróica, é uma questão de responsabilização pessoal sustentada pelo colectivo e de persistência nas respostas encontradas, nas atitudes que nos definem e nos valores redimensionados. Se a necessidade de um ato heróico inicialmente nos assusta, pois agora que nos assuste a necessidade de sermos "apenas" humanos. 

Profundamente humanos. 

© 2020 Patrícia Labandeiro. Todos os direitos reservados.
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