Amar sem “cordões umbilicais”: um segredo para as relações maduras

03-07-2020

    No contexto de psicoterapia de adultos, são inúmeros os desafios e problemáticas associados às relações amorosas que nos são trazidos como foco de mal estar e sofrimento emocional. Excluindo aqui reflexão e referência a disfuncionalidades de fundo como relações pautadas por dinâmicas agressivas, a "tensão" mais comum prende-se com o desejo de que o outro corresponda a expectativas de satisfação plena de necessidades próprias. A assunção de que o outro existe com essa função e se deve ajustar ao comportamento que preenche as nossas dimensões de maior vulnerabilidade, pode conduzir a relações com elevado nível de exigência e baixos níveis de tolerância. 

    Se eu sou nervoso e tenho dificuldade em controlar impulsos, o outro existe para me acalmar e controlar de tal forma os seus impulsos que os meus não sejam "postos à prova". Se eu sou sensível e reajo mal a conflitos, o outro existe para me criar um ambiente ameno e me proteger das tensões advindas do confronto. Se eu tenho dificuldade em me focar e ser produtivo, o outro existe para organizar a minha vida e garantir que produz aquilo de que como casal precisamos. Se eu tenho dificuldade em me sentir próximo e seguro com amigos, o outro existe para viver em fusão constante comigo e para ser o amigo que dá o apoio que não recebo de todos os outros que poderia ter. Se eu tenho tendência para cair em caos internos de questionamento e inseguranças, o outro existe para me dar respostas, para me mostrar o sentido e para me dizer por onde é o caminho. E poderíamos continuar... 

    Esta dinâmica em que do outro se espera comportamento ajustado às minhas necessidades, sem movimento de auto confronto e de trabalho interior em relação à satisfação independente e madura das mesmas, leva muitas vezes a uma frustração latente pois uma necessidade estrutural nunca será totalmente resolvida pela ação dos outros. Exige sempre um trabalho interno de compreensão das suas raízes, debate cognitivo sobre a sua validade, análise dos recursos individuais disponíveis e investimento na maturação psicoafectiva.

   Ainda que o outro possa contribuir para a minha calma e ponderação, eu preciso de auto-regulação emocional interna e autónoma. Ainda que o outro ajude na organização e na tomada de decisão, eu preciso de um sentido de orientação própria e valores bússola que me situem. Ainda que o outro possa ser o confidente e o suporte afectivo mais crucial eu preciso de me saber abraçar, tolerar, perdoar e aceitar! Ainda que o outro seja motor de alegria e entusiasmo, eu preciso de descobrir o sorriso da alma, aquele que surge, permanece e morre em nós, em momentos de satisfação e realização interna, só nossa. Ainda que o outro possa ser foco de significados e de sentido, eu preciso de reconhecer o valor universal e inerente à própria vida que existe e se manifesta através de mim!

    Assim, surge uma reflexão relevante para adultos em relação que querem ser complementaridade que enriquece e não escassez constante que sufoca. O que é que eu sinto que o outro não me dá? Em que é que o outro não me satisfaz e não corresponde ao que eu preciso? Face a essa resposta, perceber de que forma eu posso trabalhar comigo próprio a auto-satisfação dessa vulnerabilidade e necessidade por forma a que o comportamento do outro seja um contributo de valor e pelo qual eu me consiga sentir grato e não uma peça de base no puzzle do meu equilíbrio que, quando falha, me leva à frustração e à atribuição de culpas...

    A satisfação da necessidade de qualquer um dos elementos do casal, é sempre um desafio conjunto. Mas começa primeiro pelo próprio e só depois, o outro acrescenta, traz mais valia, como que a tal "cereja no topo do bolo". Se esperamos que o outro seja a garantia dos "ingredientes base para a massa do bolo", corremos vários riscos: excesso de pressão, tentativa de controlo e perda de sentido de identidade, individual e construída com que o que é nosso para além do outro. Se isto acontece e um dia essa relação vive um fim, podemos sentir que a nossa identidade vai embora com o outro. Perder uma pessoa que ainda amamos e fazer o luto de uma relação são experiências exigentes mas perdermo-nos a nós e fazermos o luto de uma parte de nós, pode ser desestruturante. E é por isso que recebemos também com regularidade adultos em pleno caos e colapso psico-emocional num momento de separação ou divórcio... porque não estão apenas a fazer o luto face ao outro, mas o luto face a si próprios e a tudo em que ficaram demasiado emaranhados com o outro...

    Recorrendo à metáfora do cordão umbilical, se o desafio da vida é, em termos de desenvolvimento e maturação, um convite constante ao corte desse cordão com os nossos progenitores e/ou figuras de cuidado, tentemos não cair na falácia de gerar novos "cordões umbilicais" com companheiros(as) que são, na verdade e na essência, seres independentes a fazer a sua jornada... podemos passar uma ou várias etapas juntos e podemos depois seguir caminhos separados para que cada um viva o percurso que lhe está destinado, na magia da co-construção constante entre acasos e escolhas.  

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